Querido diário: cresci entre os loucos & santos

agosto 05, 2020


Quando eu era criança assim como eu achava óbvio que existisse pé de macarrão, também achava que era uma regra da vida que toda criança tivesse avós. Assim, tudo bem encaixado na normalidade: eu chego da escola, almoço com as entidades “pai e mãe” e aos domingos, os almoços são na casa dos meus avós. Os que moram perto ou os que moram em outra cidade. Não importa. Eles existem e estão lá como uma instituição e devemos gostar deles porque sim, devemos acreditar na existência deles com a mesma obviedade que acordamos todo dia e temos a certeza de que terá um céu sobre as nossas cabeças.

Quando somos crianças muitas coisas são óbvias: álcool líquido na minha casa era um item tão urgente como eram os sabonetes, pois morar perto do mato (um quase sítio) era ter a visita de caranguejeiras. E tocar fogo nas caranguejeiras e vê-las chiando e estatelando entre as chamas era óbvio, como era óbvio que me gritassem e dessem uma tapinha no meu joelho quando eu sentava de perna aberta. Era óbvio que me chamassem de “doidinha” porque eu gostava de falar, dançar, pular, cantar, escrever e brincar de ser apresentadora de televisão. Como tudo que fazem quando tem preguiça de pensar, os adultos encurtam subjetividades, fazem atalhos mentais. Essas coisas óbvias... que de tão óbvias caducam e são substituídas por outras mais óbvias ainda.

Num domingo de junho de 2020 eu acordei e não existia nenhum dos meus avôs ou avós respirando. Todos enterrados, cada um no seu tempo: uns resistindo na UTI, outros sem pronunciar a palavra “câncer” por temer até o som da coisa ruim. Com o susto dessa ideia, chorei um pouquinho mastigando a notícia da partida do último deles, vovô Leonardo. A família toda repetia o discurso do "descansou", “estava muito fraquinho” e eu também, pra encurtar a conversa... mas eu sabia: vovô Leonardo foi, dos meus avós, o que escolheu descansar. Ele estava triste, parou de comer e foi isso. Foi documentando a vida deixando recados por entre os livros dele, acho que em protesto. Meus avós foram as primeiras pessoas que me deram a dimensão de que seres humanos podem ser bons e ruins ao mesmo tempo. Notei isso primeiro neles e só depois tive coragem de encontrar a mesma coisa nos meus pais e, finalmente, em mim.

Vovô Zuza por exemplo era extremamente bruto no trato com pessoas adultas em geral, mas nunca vi tanta ternura ao abraçar vacas, cavalos e bebês. Eram tipo seres místicos pra ele! Vovó Cleudes e Vovó Irene, por mais que jurassem de pés juntos que amava igualmente todos os netos, sabíamos que sim: os presentes e os tempos de visitas em cada casa eram diferentes. Vovô Leonardo era tido como ignorante e era... nas respostas dadas ao povo, nas suas brigas com Deus e na chamação de palavrões de todos os tipos. Adorava invocar Satanás pra provocar minha avó, evangélica de saia composta e bíblia debaixo do sovaco. Mas dos meus avós era o único que ouvia música clássica e tinha coleção de livros.

Quando pequena eu assistia isso e era uma confusão na minha cabeça: como podem eles ser engraçados e ao mesmo tempo tristes? Como podiam ser tão contraditórios? Faço esse monte de perguntas porque delas meu juízo está cheio e essa mania de colocar interrogação no que falo (e faço) foi recentemente notada pela minha orientadora do doutorado, que sinalizou inúmeras vezes a presença das interrogações no meu texto e me aconselhou, muito sabiamente, a não esquecer qual era a pergunta principal da minha tese. Tenho dificuldade de fazer só uma pergunta. Nem sei qual é a minha pergunta principal dessas coisas de infância. E se os nossos pais estavam nos usando como escudos para uma relação falida que eles mesmos tiveram com os próprios pais? E se os netos fossem (de vez em quando) tipo um arremedo de perebas?

Vovô Zuza abraçava os animais no sítio mas almoçava as galinhas que corriam no terreiro. E digo mais, vovó Irene era partner no assassinato das bichinhas. Um crec-crec no pescoço e duas passadas de faca amolada e os pés alegres que ciscavam na terra estavam imóveis. Meu pai ia almoçar essa mesma galinha. E minha mãe... e eu, enguiando e sentindo a carne branca virar bucha na minha boca. Que raiva da morte da galinha! Que raiva de repetir os costumes sem ter a coragem de dizer que eu só queria comer pirão com arroz.

Vovó Irene rezava que só mas era fofoqueira e maledicente que só a mulesta (desculpa, mulher, mas morrer não nos torna santos). Adorava fazer do corpo um museu de doenças, exibia o vermelhão na perna como um troféu... mas também era ela que, rezadeira requisitada no bairro inteiro, passava aqueles galhos de planta na gente rezando todo tipo de ave-nosso-pai-maria e ao fim, nos desejava o que? Saúde! Muita saúde, que era a maior riqueza que uma pessoa poderia ter (mesmo que disso ela se orgulhasse de ser pobre, como que para ganhar a pena e atenção de todos).

Depois foi inevitável identificar as cicatrizes entre meus pais e os pais e mães deles, ouvindo como havia pequenos machucões. Descobrir isso foi fácil, especialmente pra mim, curiosa desde girina: lá do quarto eu prestava muita atenção naquelas conversas de adulto que estão ficando exaltadas e reverberando com a ajuda dos azulejos da cozinha. Vozes que vão amufinando e enfraquecendo quando a gente vai chegando se fingindo de môca, pegando o copo e caminhando até o filtro d'água. Nem dois dedinho de água a gente coloca no copo, molha o bico só pra justificar a farsa fofocal. As falas vão se dissipando e fica só aquele ar de fofoca inacabada que depois vai ser retomada pelos nossos pais.

Fico pensando: quais os arranhões entre meus pais e eu? E entre minhas irmãs e eu? E entre o mundo e eu? Vou me fazer de doida... ou melhor, "doidinha". Vou seguir o conselho da minha orientadora e focar na pergunta principal dessa pesquisa-de-mim (nem de longe acadêmica e na verdade muito que besta). E a pergunta é: que faço eu com tanta pereba e arranhão?

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1 comments

  1. Adoro o jeito que você escreve e conta suas histórias! Senti falta das postagens por aqui!

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