¿a que te dedicas? Ser rasgo quando te querem traço

agosto 12, 2020

O que mais gosto quando estou aprendendo outras línguas é entender que palavras e expressões fazem a gente percorrer caminhos mentais diferentes do que estamos habituados a fazer. Falar português não é só falar português, é aprender a pensar em português, sentir as coisas de acordo com as possibilidades lexicais e semânticas que nos ofertam. A gente aprende a sentir ou ignorar coisas pois tudo precisa de um nome-palavra, uma imagem, um sinal... um meio de entrar na gente. E se elas não existem, essas coisas não irão habitar nosso juízo, esse lugar-destino da comunicação (e desse lugar as coisas só saem transformadas com um pouco da gente).

Esse arrodeio todinho é só pra dizer que fiquei pensativa esses dias, depois lembrar de uma aula de Espanhol. Uma das situações que deveríamos aprender nos breves exercícios era perguntar qual a profissão ou ocupação dos nossos colegas. Em espanhol a gente não chega com a mesma abordagem aqui do Brasil ("mas tu trabalha em que? Tu faz o que? Tu é o que?"). Por aqui a gente tem o costume de dizer o "sou" acompanhado da nossa profissão e isso nos define de cara. Quando perdemos ou não temos essa profissão/ocupação a gente fica naquele constrangimento do não-ser, gagueja, tenta encontrar uma palavra-síntese ou diz que vai ser, que está a caminho de se tornar algo. Sou jornalista, sou professora, sou. Precisamos ser-profissão de algo, para além do nosso nome, qualquer coisa que tenha um peso social, uma utilidade.

Quando pedi demissão do cargo de professora para voltar a ser estudante, eu perdi o fator-emprego, virei bolsista. No Brasil, basicamente isso é virar nada, as pessoas não entendem que estudar também é ocupação e tarefa. Tive a experiência de visitar outros lugares e sentir que estudar é muita coisa e isso me dá sempre aquela utopia que me deixa em pé. Mas voltando para a aula de espanhol. A gente pergunta assim ¿a que te dedicas

Muito embora a ideia seja saber da ocupação do outro, passei um tempão pensando nisso, no dedicar-se. Não tô aqui discutindo tradução, tô apenas pensando no quanto é mais simpático e até mais poético pensar nas mesmas perguntas quando elas recebem outras roupas, outras palavras. O caminho que o pensamento faz na nossa cabeça é outro. A que eu me dedico, onde lanço meu tempo, onde coloco o mínimo de paixão no que faço. Hoje me dedico a ler, escrever, pesquisar e por mais que de vez em quando me entristeça ter que explicar e justificar isso a quem não vê sentido em "parar tudo para estudar", sou feliz por me dedicar a isso. Nem sempre é explícito aos olhos dos outros o que dá sentido às nossas vidas. Aliás... precisa ser?

Outra expressão que me deixou pensativa foi traços de personalidade. É assim que a gente diz aqui no Brasil quando queremos descrever alguém. As persistências, insistências e às vezes até teimosias comportamentais ganham nome de traço. Me incomoda. Um traço é coisa frágil, dá a impressão até que foi escrito com lápis grafite, bem fininho e trêmulo e a gente pode apagar com qualquer lado da borracha, que dá certo. Sem muito esforço, a folha que abrigou o traço volta à brancura.

Em espanhol, se fala rasgo de personalidade. Por ter no meu repertório a bagagem de um rasgão (da língua portuguesa) eu achei tão intenso quando ouvi isso que estava distraída anotando as coisas no caderno e de supetão levantei o rosto, como quem ouve um barulho e não uma palavra. Estávamos na aula e o professor pediu pra falas dos rasgos de personalidad. Achei bonito isso, cortante, fundo, estrondoso feito um trovão. Gostei do passeio mental que diz, de pensar que carregamos (todos!) alguma coisa que sai rasgando tudo, torando a gente por dentro, indisfarçável, como que uma cicatriz.

Remendar o que se rasga dá mais trabalho. Nem imitar um rasgo é possível, cada um de nós ao partir um papel ao meio vai imprimir nas mãos forças e direções muito próprias. Um pedaço pode sair maior que outro. Alguns dobram cuidadosamente e lambem o papel antes de partir, buscando um corte reto. Outros apenas se enfurecem e despedaçam tudo, impacientes. Falar dos rasgões é como se incomodar por estar dentro de uma loja de tecidos e ouvir as tramas do pano se torando todas com os puxões dados pelas mãos dos vendedores apressados. É travar a mandíbula de incômodo.

Um rasgão é mais original e mais difícil de domar do que um traço, um rabisco. Falar dos nossos tracinhos de personalidade é disfarçar. Se pode até observar os tracinhos de alguém e tentar emular. Você pode sair juntando um tracinho de música ali, um risquinho de livro acolá mas você não é capaz de conhecer os rasgos-estragos que aqueles trechos de música ou livros fazem mover dentro da pessoa de quem você catou pedaços. Meu apreço mesmo é pelo rombo. Me encanta gente funda de abismos.  Se a aula fosse agora e o professor me perguntasse ¿A que te dedicas? certamente eu diria que a mis rasgos. 

E você deveria ocupar-se dos seus também :) 

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